Nota de zero a dez do Autor

Este best-seller foi escrito há pouco mais de três anos, quando surgiu a idéia de criarmos um livro trocando emails, já que um mora nas imediações do Trópico de Capricórnio e outro exatamente sobre a Linha do Equador. Mas ficou engavetado num HD desde então e só agora nos autorizamos a publicação digital na internet. Então, direto do túnel do tempo para a mesa de trabalho do Windows7 de milhões de leitores virtuais do cyberspace digital, eis que surge nosso primeiro livro digital para livre download.

No entanto, advirto que sem a nova revisão ortográfica da língua portuguesa, afinal, nem os proprietários originais descendentes de Cabral estão muito disposto a tudo isso...

Mas não posso deixar de ressaltar que um livro digital é estranho. Não possui tiragem inicial, não tem data de lançamento em livraria chique, nem noite de autógrafos com jornalistas e paparazzos de plantão. Não tem buffet de comemoração com canapés de caviar, não tem edição revisada, tampouco reversão financeira dos dividendos de milhares de livros vendidos mundo afora. Mas também não tem fracasso de vendas! Caracas! Um livro digital não tem nada.

Dane-se! O que vale mesmo é a inovação e o pioneirismo. Apesar que não é bem uma inovação e tampouco pioneirismo, porque até Paulo Coelho já fez isso. Diria então que compadecemos da vontade de compartilharmos com o próximo, darmos nossa cota gratuita de cultura à sociedade brasileira, afinal, somos socialistas.

Não! Comunistas. Não! Capitalistas. Não! Neo-liberais. Não! Anarquistas. Não! Nacionalistas. Não! Democratas. Não! Republicanos. Não! Extremistas. Não! Cristãos. Não! Ateus. Nao! Budistas. Não! Apenas mais dois na multidão em busca de quinze minutos de fama. Mas mesmo que a notoriedade não venha, pois não estamos a divulgar um vídeo engraçadinho no YouTube, ainda assim, a publicação de nosso livro digital terá valido a pena só por usarmos gratuitamente produtos do Google a serviço da humanidade. Isso, mesmo se tiver um único leitor digital.

Mas se alguma editora se interessar e exigir que retiremos do ar nossa publicação, desculpem caros leitores, mas teremos que deixar de lado essa coisa de altruísmo e ganhar dinheiro para pagar o leitinho das crianças...

Paulo Cosmo

Prefácio e Bonifácio

Ainda aguardando a resposta do imortal José Sarney.

Dedicatória de Arthur

Esperando a boa vontade do autor, sempre ocupadíssimo entre a direção de uma peça teatral da filha e a troca de fraudas do neto em crescimento.

Dedicatória de Cosmos

À minha primeira professora da ditadura, Dona Maria Matavelli, uma jovem senhora a beira da aposentadoria pública já no início da década de 70, que com muita dedicação, paciência, determinação, olhar meigo, gesto suave e uma boa régua de 40 cm de madeira como mero apoio pedagógico, conseguiu fazer com que eu focasse meus olhos na leitura da Cartilha Caminho Suave, firmasse minha mente na decoreba da complexa tabuada do 10 e conduzisse minhas mãos inocentes por entre as páginas do caderno brochura de caligrafia para ratificação de meu abecedário. Snif...

Paulo Cosmo

Capítulo 00000001

- Por que não tira pelo menos o paletó?

Era um problema. O sonho dele era ser detetive. Não desses detetives particulares, que ficam fuxicando a vida dos casais. Não. Ele queria ser daqueles detetives americanos, que trabalham para o Departamento de Polícia de Nova York. Sabe? Tem os guardas que andam de uniforme, e tem os detetives, que andam sempre de terno e com aqueles sobretudos compridos, tipos Arquivo X. Um sobretudo bom mesmo ele ainda não tinha achado. Mas andava sempre de terno. E nem tinha conseguido uma vaga no Departamento de Polícia de Nova York. Era tenente da polícia de Manaus. O problema era o calor filho da puta que fazia nessa cidade. Uns diziam que não era nem a droga do calor. Era a umidade do ar. Fosse o que fosse, suava em bicas.

- E o que foi agora?

- Mataram outro cara. DAQUELE jeito.

- Caralho!

Os policiais foram abrindo caminho no meio do povo todo. Tinha de tudo lá, índio, garimpeiro, jornalista, macaco-prego, madeireiro. Ele conhecia os tipos só de olhar pra cara deles. Chegaram perto de um córrego, que passava atrás de uma favela. Tinha umas araras ali também, olhando. Uns tucanos.

- Tenente, o cara está ali.

Ele foi chegando perto, tinha um pano cobrindo o defunto. Alguém já tinha acendido umas velas, mas elas já tinham apagado. Essa porra de umidade do ar não deixa nem as velas acesas. Um guarda levantou o pano. Ele fez o que invariavelmente fazia quando via um defunto. Vomitou.

- Porra, tenente!

- Desculpa aí.

O guarda começou a procurar alguma coisa pra se limpar, resmungando que esse tenente devia ser mesmo veado. Era uma teoria antiga do guarda. Todos os tenentes são meio veados. Homem só vai até sargento. Pula pra capitão e segue em frente. Agora, todo tenente é veado. Pode escrever aí.

O tenente, por sua vez, ficou ali, tentando limpar a porcaria que tinha feito no terno e no defunto. O defunto, como os outros quatro que tinham sido encontrados na última semana, estava sem cabeça. Um defunto sortudo, porque onde deveria estar sua cabeça, agora repousava o almoço do tenente.

- Mas que bela porcaria que o senhor fez aqui com a nossa cena do crime, hein tenente?

Esse era o sargento. Um gordão, fã de filmes de faroeste que sempre merendava algum belisco na cena do crime.

- Eu... eu...

- Tudo bem, tenente. Eu devia ter me lembrando desse seu... ham, problema. Mas não estrague meu lanche!

- Eu estou me tratando.

- Tudo bem. O que acha que foi?

- O que foi o quê?

- O defunto, oras.

- O que é que tem ele?

- O que o senhor acha que causou a morte?

- Bem, ele está sem cabeça e, bem, as pessoas não costumam sobreviver muito tempo sem as suas cabeças, tem alguma coisa a ver com o cérebro ou algo assim...

- Eu estou querendo saber O QUE foi que arrancou a cabeça dele.

- Ah. Hum, sei lá. Uma onça?

- Então desta vez o tenente sugeriu uma onça? Finalmente algo capaz de fazer isso. Imbecil, mas mais coerente que as demais. Estava receoso que desta vez viesse com uma arara-azul ou outro animal apavorante, afinal, quem já considerou existir um tucano assassino e uma tartaruga ninja, poderia vir com qualquer coisa desta vez. Até cipó mutante...

O que o sargento tentava dizer é que nem era preciso profundo conhecimento científico para sugerir uma hipótese saudável. Apenas um olhar observador e certa dose de alfabetização já eliminavam várias possibilidades.

- Para repetir tamanha baboseira, o tenente ainda não leu os relatórios da perícia que apontam a utilização de um instrumento cortante, provavelmente uma espada, nas demais degolações. Armas reincidentes, caro tenente.

Aparentemente nada de Highlander em duelos medievais imortais para se tornar inutilmente um mortal em filme de continuação, até porque, nenhuma cabeça estava na cena do crime e as vítimas não aparentavam ter mais de quatrocentos anos.

Nesse meio tempo, enquanto observava a reprimenda no tenente, o guarda, ainda sujo do nojento vômito se aproximou.

- Sargento. Isto estava perto do córrego.

- Idiota! Já não disse para não mexer em nada na cena do crime? Era para esperar a perícia.

- Mas sargento...

- Nem “mas” nem meio “mas”. E ainda por cima não usou luvas para pegar no material. Quantas vezes terei que repetir para não marcarem evidências com suas digitais?

- Mas senhor, não existem luvas na corporação. Contingência de verbas senhor. Esqueceu sargento?

- Não esqueci, seu inútil! Luvas foi força de expressão. Usem a imaginação e peguem um lenço, papel toalha, qualquer coisa, menos as próprias digitais.

- Lenço e papel toalha? Desculpe sargento, mas não...

- Pare, pare. Deixe-me ver isso.

Parecia um artefato indígena, uma espécie de amuleto da sorte ou rito sagrado. Certamente amuleto da sorte não era. Mas não se tratava de mera coincidência, visto que objetos semelhantes também haviam sido encontrados nas suas proximidades das demais mulas-sem-cabeça. Outra característica que ligava os crimes eram as posições dos corpos. Todos de bruços, com braços em crucifixo e pernas unidas por um pequeno laço de cipó. Algo de satânico, pois parecia um crime premeditado, um ato de violência não praticado ao acaso. Aquelas vítimas possuíam alguma coisa em comum.

- Mas o que?

Pensava o sargento enquanto fitava o cadáver. Na realidade estava com um olho no Diabo e outra na cruz, não necessariamente nessa ordem, pois também observava a movimentação desencontrada do tenente na cena do crime.

- Guarda, venha cá.

- Pois não sargento.

- Traga-me um lenço ou papel toalha para limpar a mão.

- Lenço e papel toalha? Desculpe sargento, mas não...

- Já sei, já sei... Deixe para lá que chupo os dedos.

- Sargento olhe o tenente. O que ele está fazendo?

- Provavelmente se perguntando por que uma onça não poderia ter acabado com a vida dessa jovem. Isso é uma desonra para a corporação. Como a academia aprova esses imbecis?

- Uma jovem, sargento?

- Não me venha você também. Outro pulha da academia? Rapaz olhe o corpo no chão. Já viu homem assim? Já não basta aquele veado das selvas e agora me vem um burro do mato?

- Sei que é uma mulher sargento! Mas jovem?

- Observe a suavidade daquelas coxas grossas e bem torneadas que acabam na rigidez daquele glúteo arrebitado. Uma combinação perfeita. Certamente uma jovem de aproximadamente uns dezoito anus suculentos. Que pecado!

- Realmente um pecado senhor. Tão jovem! O senhor é muito observador. Glúteo arrebitado. Hum senhor!

Observador a ponto de perceber um som intermitente que incomodava seus ouvidos desde que chegou no local. Uma mistura de pregação forte e manifesto popular. Uma música de fundo assustadora que potencializava ainda mais a cena de hediondo crime ribeirinho.

- Guarda, pegue uma viatura e vá identificar de onde vem esse barulho. Se for o que imagino, algumas pistas começam a se encaixar. Não será mera coincidência.

- Certamente senhor. Quer que eu leve o tenente?

- Não faça isso. Pedi para identificar o som, não para me trazer uma nova hipótese sobre o acorde das andorinhas em sinfonia com o grunhido dos marrecos. Deixe aquele ambientalista divagando do por que não ser uma onça a assassina.

A poucos quarteirões dali a viatura depara-se com duas origens sonoras. Uma do interior da Igreja Evangélica em caloroso culto ecumênico e outro do ato público na praça misturando o megafone no palco com o murmurinho da multidão exprimida para saldar as lideranças em exaltada evolução verbal.

- Mas onde é que está indo todo mundo?

O tenente não estava com a menor vontade de ficar ali, sozinho, ao lado do defunto. Quando percebeu a viatura partindo, foi perguntar para o sargento o que é que estava acontecendo.

- Sargento!

- Pois não, humpft, tenente.

- Por que é que a viatura está indo embora sem a minha autorização?

- Viatura, que viatura?

- AQUELA viatura, com a sirene ligada e as luzes piscando em cima.

- Ah, aquela? Bem, ela está indo investigar uma coisa pra mim.

- E que coisa seria essa?

- Pode ter a ver com essa defunta aí.

- Defunta, é? Hum... Bem, de uma maneira ou outra, se a defunta está aqui, as pistas também devem estar, pra que procurar tão longe?

- Ouça bem. O senhor não está ouvindo nada?

- Hum, é, agora que o senhor está falando, estou. Uma barulheira esquisita... Será a onça?

- Não senhor. Não deve ser.

- Mas o que será, então?

- É isso mesmo que eles foram investigar.

O primeiro a subir no palco era um baixinho de óculos fundo-de-garrafa. A multidão aplaudia. Ele começou seu discurso.

- TRABALHADORES DO BRASIL!

A platéia começou se olhar ressabiada.

- Hum, quer dizer, MINHA GENTE, NÃO ME DEIXEM SÓ!

Ouviu-se um início de vaia no meio da multidão.

- COMPANHEIROS E COMPANHEIRAS!

A platéia começou a jogar umas frutas esquisitas no coitado do baixinho, bacuris, cupuaçus, graviolas, pupunhas e outras coisas lá que ninguém nem sabia que existia.

- PORRA, MAS VOCÊS QUEREM QUE EU CHAME VOCÊS DE QUÊ, GALERA?

A platéia se aquietou um pouco. Ou as frutas acabaram, sei lá.

- GALERA TÁ BOM?

Um rapaz que estava logo ali, na primeira fila, olhou em volta, para os outros, cochicharam alguma coisa, balançando as cabeças e, finalmente, ele respondeu:

- É, galera tá legal.

O baixinho de óculos fundo-de-garrafa retomou o fôlego e, finalmente, começou seu discurso:

- E aí, galera?! Tudo em cima? Hoje nós vamos arrebentar! E vamos arrebentar porque nós vamos falar dessa porcaria que é carregar esse mato todo nos nossos ombros! Enquanto os carioquinhas ficam lá, curtindo o marzão deles, enquanto os paulistanos ficam lá, curtindo o MASP deles, nós, aqui nesse fim de mundo, além de suar em bicas ainda temos que carregar a Amazônia nas costas! POIS ESTÁ NA HORA DISSO ACABAR!

- ÊÊÊÊÊÊÊÊÊ (essa é a galera gritando, com os braços levantados)

- É isso aí galera! Agora só vocês!

- ÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ

O baixinho de óculos fundo-de-garrafa estava com a platéia em suas mãos. Ele era realmente um ótimo orador. Já tinha feito, inclusive, vários cursos de oratória, além de assistir todos os shows do Leandro e Leonardo. E ele continuou.

- Os homens lá de Brasília precisam entender umas coisas! Eles ficam lá, nas suas mansões, e só olham esse mato todo lá de cima, dos jatinhos particulares deles... Manda eles descerem aqui pra verem o que é viver nessa porcaria! Aguentar esse monte de mosquito! Esse monte de jibóia!

- ÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ

- E isso sem contar as piranhas!

- ÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ

(não sei se você sabe, mas o povo de Manaus não gosta muito de piranhas)

- E tem mais! Se a gente não pode cortar a madeira, se a gente não pode matar uns bichinhos, se a gente não pescar, pra que caralho é que serve esse matão todo, alguém aí pode me dizer?

- ÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ

Nesse momento, de dentro da Igreja Evangélica que ficava bem ao lado do palco montado, saiu um senhor trajando terno e com uma bíblia debaixo do braço. Ele olhou bem para a galera, levou o dedo indicador até a boca e fez:

- SSHHHHHH

Do meio da multidão, só dava para ver as páginas da bíblia estraçalhada sendo levadas pelo vento. Os guardas, boquiabertos, não puderam fazer nada, além de pedir reforços pelo rádio.

Capítulo 00000010

Reforços que não vieram, pois grande parte do contingente estava noutro lado da cidade controlando a rebelião do Cadeião Tupinamba, uma penitenciária flutuante de segurança máxima que abriga índios não civilizados de alta periculosidade que cometeram seqüestros relâmpagos, estupros, assassinatos, estelionato, cárceres privados, roubos a bancos, tráfico de drogas e de influência, venda de diamantes e devastação da floresta.

- Sargento, nenhuma viatura dará apoio, nem as kombis do IML podem vir aqui. Informaram que estamos por conta e risco.

- Puta que pariu! Só me faltava essa. Controlar confronto entre evangélicos e protestantes. Primeiro uma degola e agora uma Cruzada. Da guilhotina à espada. Essa porra de dia promete!

E nenhum apoio viria, pois o Cadeião longe dali estava um pandemônio. Os nativos do descobrimento haviam feito índias, pajés, curumins, caciques e todo tipo de caboclo de reféns, inclusive uns carcereiros de Brasília que, segundo os índios, seriam os primeiros a serem torrados vivos em cobertores caso suas exigências não fossem atendidas. Coisa de revanchismo pesado!

- Mas quais as exigências desses silvícolas, soldado Palikur?

- São várias Coronel Jader. Querem TV de Plasma para assistir aos jogos da Copa, cerveja Bhoemia tipo Abadia, torresminho crocante, amendoim descascado, ampliação do horário de visitas íntimas e centrais de ar de 12.000 BTU´s por cela. Não querem mais aqueles aparelhos que fazem barulho...

- O que? Centrais de ar?

- E tem mais! Não querem mais comer índia não. Dizem que esse negócio de rangar índia é coisa de onça na selva. Exigem que forneçamos piranhas profissionais nas visitas íntimas.

Os índios sabiam muito bem o que queriam, afinal numa Zona Franca amazônica, descolar TV de Plasma e pescar piranha fresquinha era coisa fácil. Ainda mais porque piranha dá em qualquer lugar e não faria cu doce para curtir um verdadeiro descendente do Pau-Brasil. E ao contrário dos manauaras, índio traça piranha, caldo de piranha e até macaco que estiver no pau.

- E na bundinha esses depravados não querem nada?

- Querem sim Coronel. Mas isso quem quer são os cortadores de churros. Exigem implante de silicone nas nádegas chatas, permanente e reflexo nos cabelos lisos...

- Até as bichinhas do mato querem algo?

- Sim senhor, Coronel. Exigiram a presença íntima de estivadores do porto sete vezes por semana. Dizem que não agüentam mais ter que ficar abusando sexualmente de macacos-prego, visto que seus colegas de cela só gostam de coçar o saco, tomar cerveja e assistir TV.

Fosse na floresta do Congo, teriam pelo menos gorilas enormes ao invés de pintos de sagüis para dar ré no cocô e escovar os dentes.

- Índio viado! Só falta índizona?

- Calma Coronel. Essa rebelião já foi controlada semana passada no Presídio Caranguejeira Máxima para detentas de alta periculosidade e baixa feminilidade...

- As feias de doer! Sei, sei! Aquela desordem controlada com o auxílio das militantes do movimento de preservação das periquitas, pererecas, pacas e aranhas nativas.

- Exatamente! As companheiras daquelas feministas que batalharam a vida toda para trabalhar fora só para poderem usar a licença maternidade para ficar mais tempo em casa. Ganhando!

Mas longe dali o negócio continuava feio, pois a GALERA mobilizada ainda queria invadir o templo e fazer crente rezar a santa missa. Tudo por causa de um “SSHHHHHH” desajeitado.

- Acalmem-se irmãos. Não propaguem a violência. Paz e amor! Só pedi um pouco de silêncio para realizar nosso culto.

É claro que, imediatamente, o pastor foi esquartejado.

- Culto a puta que o pariu!

O tenente coçou a cabeça. Não é que ele estivesse pensando em nada, era apenas um problema antigo de seborréia, mas o sargento ficou achando que o tenente estivesse tendo mais uma de suas idéias mirabolantes, no que não estava totalmente errado.

- O senhor não acha que tudo isso acontecendo ao mesmo tempo pode ser uma espécie de sinal, sargento?

- O quê, tenente?

- Um sinal.

- Ah. Um sinal.

- É. Veja bem. Pastores sendo esquartejados. Rebeliões silvícolas em presídios. Comícios de ideólogos CONTRÁRIOS à preservação da Amazônia. Assassinatos em série. Até mesmo uma onça. Há quanto tempo o senhor não ouvia falar de uma onça aqui pelos nossos lados? Isso só pode ser um sinal.

- E um sinal exatamente do quê?

- Que tal do Final dos Tempos?

- O Final dos Tempos?!?!?

- É, o Final dos Tempos, o que há de tão espantoso nisso? Se os Tempos começaram, uma hora ou outra eles têm que acabar.

- Mas, caramba, será que Os Tempos tinham que acabar justo no meu plantão?

O tenente enfiou suas mãos no bolso do terno e olhou em direção à mata. O vento bateu em seus cabelos, que ondularam como as folhas de salgueiros. O tenente colocou uma perna um pouco à frente, tentando imitar Clark Gable em “...E o Vento Levou”, mas se desequilibrou e teve que se pendurar no ombro do sargento. O sargento cuspiu de lado e suspirou:

- Hum... tudo bem, tenente?

- Tudo, tudo.

- Precisa de alguma ajuda.

- Não, não, pode deixar.

- Bem, e agora, o que faremos?

- O senhor faça o seguinte. Volte para a Chefatura e entre em contato com outras forças policiais.

- Chefatura?

- É, Chefatura.

- Mas o que é uma Chefatura?

- É a mesma coisa que delegacia, só que mais chic.

- Hã, certo.

- Então, o senhor volte para a Chefatura e descubra se essas coisas esquisitas estão acontecendo somente aqui, em Manaus. Porque os meus instintos me dizem que isso deve ser um problema nacional. Talvez até mundial.

- Uma espécie de Armagedom.

- Armagedom! Isso mesmo, sargento! Como é que eu não me lembrei da palavra antes? O Armagedom!

- Bem, e se for o Armagedom, o que é que eu faço?

- O senhor eu não sei. Mas eu vou conhecer a Disneylândia. Eu não vou morrer sem conhecer a Disneylândia.

Armagedom ou não a situação estava realmente feia, pois nunca havia acontecido tanta coisa ao mesmo tempo no pacato rincão ribeirinho amazônico, a não ser na época da instalação de fábricas e mais fábricas de tecnologia de ponta e montagem de motos nacionalizadas com peças importadas. Um luxo da dita dura.

- Temos que dar graças aos americanos, sargento!

- Eu sei imbecil. Por isso disse que vou para a Disneylandia e não ao Beto Carrero World ou Playcenter. Até daria para encarar o Beach Park, mas não gosto de nada nacional.

- Não me refiro a isso sargento. Falo sobre o Armagedom.

- E o que os americanos tem a ver com Armagedom? Tenente, você ainda faz uso de drogas? Está querendo dizer o que?

- Não, não! Já parei com as drogas. Só não consigo me livrar da minha sogra, mas o fim dela está próximo...

Ao contrário do que pregam milhões de piadinhas sem graça sobre sogras perversas, maldosas e intrometidas, são poucos, mas muito poucos, quase raros os genros que não gostam da sogrinha do coração. É praticamente impossível não gostar dessas santas entidades carismáticas dedicadas ao eterno bem-estar do adorável e idolatrado marido da filha, pois toda boa mãe da esposa sempre trata o genro com dúzias de agrados, carinhos sem fim, quitutes maravilhosos e uma completa isenção na vida do casal. Quem não tem uma sogra maravilhosa assim? Mas o tenente não possuía essa benção do céu. Não compartilha da dádiva Divina.

- O que eu quis dizer, sargento, é que os americanos resolverão o problema do Armagedom. Eles sempre resolvem tudo...

- Agora é minha vez. Não, mil vezes não! Você anda cheirando sua sogra e não minta. Primeiro aquela história de onça degoladora e agora americanos salvadores do planeta. De onde surgem essas idéias mirabolantes?

Certamente o sargento não ia num cinema ou assistia aos filmes de Holywood na TV há muito tempo. Como pode um homem da lei contestar o poder norte-americano na salvação do planeta?

Se existia uma certeza que o tentente tinha na vida é que podia contar com nossos brothers para o que der e vier, pois já havia computado nas telas umas dez libertações de invasões de ETs perversos e malvados que queriam comer gente, escravizar humanos e sugar nossas fontes de energia, uns dois impactos profundos de extermínio total que não aconteceram por conta de kamikases nucleares americanos, isso sem contar a cruzada contra o terror mundial e o incessante controle da autonomia de países que não tem a mínima capacidade psicológica para deter a tecnologia atômica. O que seria da humanidade sem nossos compatriotas dedicados ao bem-estar da humanidade?

- Os americanos são meus heróis sargento. Desde a época da colonização de Daniel Boone até a conquista do oeste selvagem de John Wayne, sempre nossos amigos ao norte defenderam os mais fracos e oprimidos da crueldade de milhares de apaches revoltados, com sei lá o que, e chegados num escalpo de pobres famílias em busca do sonho de liberdade...

- Que merda toda é essa? De detetive passou a historiador?

- Nada disso sargento! Só estou comovido com sua escolha pela Disney ao invés dos preços abusivos do turismo local antes da hipótese improvável de acabarmos extintos como os dinossauros.

- E precisava falar toda essa baboseira em meio a uma praça em guerra? Não está vendo essa barbárie toda e ainda nem resgatamos aquela maminha que aguarda o rabecão lá no canal...

- Maminha? Não sabia do churrasco?

- Aquela presunta degolada sua anta!

- Mas sargento...

- E não bastasse ela ainda temos esse ex-evangélico que agora escuta pregações diretamente na origem.

- E o senhor esqueceu da rebelião do presídio flutuante.

- Ainda mais essa para me azarar!

Mas a rebelião estava sob certo controle, pois a fortaleza flutuante, como era conhecido Cadeião Tupinambá, oferecia realmente máxima segurança. Nenhum nativo jamais conseguira fugir de seu interior, pois mesmo que quisessem, estariam cercados de cachoeiras traiçoeiras, rodamoinhos estonteantes, areias movediças engolidoras, pedras pontiagudas cortantes, cactus venenosos, cipós enforcadores, crocodilos famintos, piranhas de toda ordem e cobras de toda espécie. Isso sem contar as dúzias de helicópteros APACHES armados até os dentes que guardavam o espaço aéreo e dois batalhões do exército venezuelano que faziam campana na fronteira só esperando um sinal de invasão.

- Sargento, o que devemos fazer para controlar esse conflito entre evangélicos e protestantes que ainda não acabou, mesmo depois que transformaram o pastor em Tiradentes?

- Primeiramente vamos dar uns tiros para cima para fazer um pouco de barulho e torrar um pouco do erário, até porque precisamos usar essas balas antes do prazo de validade.

- E depois sargento, o que faremos?

- Bem! Devemos voltar de onde começamos, pois essa porra está ficando complicada demais para seguirmos adiante...

- Mas justo agora que eu ia começar a falar das tribos indígenas que habitavam o Brasil e não foram salvas de outros cataclismos justamente porque não existiam os americanos?

- Puta merda! Pare de cheirar sua sogra rapaz.

- É sério sargento. Não me diga que, como amazônida que é, nunca escutou falar na tribo que encolhia crânios em seus ritos sagrados para ofertá-los aos espíritos da boa colheita e da potência sexual masculina? Dizem que sabiam diminuir cabeças e aumentar outras partes do corpo. Que tal sargento?