- Por que não tira pelo menos o paletó?
Era um problema. O sonho dele era ser detetive. Não desses detetives particulares, que ficam fuxicando a vida dos casais. Não. Ele queria ser daqueles detetives americanos, que trabalham para o Departamento de Polícia de Nova York. Sabe? Tem os guardas que andam de uniforme, e tem os detetives, que andam sempre de terno e com aqueles sobretudos compridos, tipos Arquivo X. Um sobretudo bom mesmo ele ainda não tinha achado. Mas andava sempre de terno. E nem tinha conseguido uma vaga no Departamento de Polícia de Nova York. Era tenente da polícia de Manaus. O problema era o calor filho da puta que fazia nessa cidade. Uns diziam que não era nem a droga do calor. Era a umidade do ar. Fosse o que fosse, suava em bicas.
- E o que foi agora?
- Mataram outro cara. DAQUELE jeito.
- Caralho!
Os policiais foram abrindo caminho no meio do povo todo. Tinha de tudo lá, índio, garimpeiro, jornalista, macaco-prego, madeireiro. Ele conhecia os tipos só de olhar pra cara deles. Chegaram perto de um córrego, que passava atrás de uma favela. Tinha umas araras ali também, olhando. Uns tucanos.
- Tenente, o cara está ali.
Ele foi chegando perto, tinha um pano cobrindo o defunto. Alguém já tinha acendido umas velas, mas elas já tinham apagado. Essa porra de umidade do ar não deixa nem as velas acesas. Um guarda levantou o pano. Ele fez o que invariavelmente fazia quando via um defunto. Vomitou.
- Porra, tenente!
- Desculpa aí.
O guarda começou a procurar alguma coisa pra se limpar, resmungando que esse tenente devia ser mesmo veado. Era uma teoria antiga do guarda. Todos os tenentes são meio veados. Homem só vai até sargento. Pula pra capitão e segue em frente. Agora, todo tenente é veado. Pode escrever aí.
O tenente, por sua vez, ficou ali, tentando limpar a porcaria que tinha feito no terno e no defunto. O defunto, como os outros quatro que tinham sido encontrados na última semana, estava sem cabeça. Um defunto sortudo, porque onde deveria estar sua cabeça, agora repousava o almoço do tenente.
- Mas que bela porcaria que o senhor fez aqui com a nossa cena do crime, hein tenente?
Esse era o sargento. Um gordão, fã de filmes de faroeste que sempre merendava algum belisco na cena do crime.
- Eu... eu...
- Tudo bem, tenente. Eu devia ter me lembrando desse seu... ham, problema. Mas não estrague meu lanche!
- Eu estou me tratando.
- Tudo bem. O que acha que foi?
- O que foi o quê?
- O defunto, oras.
- O que é que tem ele?
- O que o senhor acha que causou a morte?
- Bem, ele está sem cabeça e, bem, as pessoas não costumam sobreviver muito tempo sem as suas cabeças, tem alguma coisa a ver com o cérebro ou algo assim...
- Eu estou querendo saber O QUE foi que arrancou a cabeça dele.
- Ah. Hum, sei lá. Uma onça?
- Então desta vez o tenente sugeriu uma onça? Finalmente algo capaz de fazer isso. Imbecil, mas mais coerente que as demais. Estava receoso que desta vez viesse com uma arara-azul ou outro animal apavorante, afinal, quem já considerou existir um tucano assassino e uma tartaruga ninja, poderia vir com qualquer coisa desta vez. Até cipó mutante...
O que o sargento tentava dizer é que nem era preciso profundo conhecimento científico para sugerir uma hipótese saudável. Apenas um olhar observador e certa dose de alfabetização já eliminavam várias possibilidades.
- Para repetir tamanha baboseira, o tenente ainda não leu os relatórios da perícia que apontam a utilização de um instrumento cortante, provavelmente uma espada, nas demais degolações. Armas reincidentes, caro tenente.
Aparentemente nada de Highlander em duelos medievais imortais para se tornar inutilmente um mortal em filme de continuação, até porque, nenhuma cabeça estava na cena do crime e as vítimas não aparentavam ter mais de quatrocentos anos.
Nesse meio tempo, enquanto observava a reprimenda no tenente, o guarda, ainda sujo do nojento vômito se aproximou.
- Sargento. Isto estava perto do córrego.
- Idiota! Já não disse para não mexer em nada na cena do crime? Era para esperar a perícia.
- Mas sargento...
- Nem “mas” nem meio “mas”. E ainda por cima não usou luvas para pegar no material. Quantas vezes terei que repetir para não marcarem evidências com suas digitais?
- Mas senhor, não existem luvas na corporação. Contingência de verbas senhor. Esqueceu sargento?
- Não esqueci, seu inútil! Luvas foi força de expressão. Usem a imaginação e peguem um lenço, papel toalha, qualquer coisa, menos as próprias digitais.
- Lenço e papel toalha? Desculpe sargento, mas não...
- Pare, pare. Deixe-me ver isso.
Parecia um artefato indígena, uma espécie de amuleto da sorte ou rito sagrado. Certamente amuleto da sorte não era. Mas não se tratava de mera coincidência, visto que objetos semelhantes também haviam sido encontrados nas suas proximidades das demais mulas-sem-cabeça. Outra característica que ligava os crimes eram as posições dos corpos. Todos de bruços, com braços em crucifixo e pernas unidas por um pequeno laço de cipó. Algo de satânico, pois parecia um crime premeditado, um ato de violência não praticado ao acaso. Aquelas vítimas possuíam alguma coisa em comum.
- Mas o que?
Pensava o sargento enquanto fitava o cadáver. Na realidade estava com um olho no Diabo e outra na cruz, não necessariamente nessa ordem, pois também observava a movimentação desencontrada do tenente na cena do crime.
- Guarda, venha cá.
- Pois não sargento.
- Traga-me um lenço ou papel toalha para limpar a mão.
- Lenço e papel toalha? Desculpe sargento, mas não...
- Já sei, já sei... Deixe para lá que chupo os dedos.
- Sargento olhe o tenente. O que ele está fazendo?
- Provavelmente se perguntando por que uma onça não poderia ter acabado com a vida dessa jovem. Isso é uma desonra para a corporação. Como a academia aprova esses imbecis?
- Uma jovem, sargento?
- Não me venha você também. Outro pulha da academia? Rapaz olhe o corpo no chão. Já viu homem assim? Já não basta aquele veado das selvas e agora me vem um burro do mato?
- Sei que é uma mulher sargento! Mas jovem?
- Observe a suavidade daquelas coxas grossas e bem torneadas que acabam na rigidez daquele glúteo arrebitado. Uma combinação perfeita. Certamente uma jovem de aproximadamente uns dezoito anus suculentos. Que pecado!
- Realmente um pecado senhor. Tão jovem! O senhor é muito observador. Glúteo arrebitado. Hum senhor!
Observador a ponto de perceber um som intermitente que incomodava seus ouvidos desde que chegou no local. Uma mistura de pregação forte e manifesto popular. Uma música de fundo assustadora que potencializava ainda mais a cena de hediondo crime ribeirinho.
- Guarda, pegue uma viatura e vá identificar de onde vem esse barulho. Se for o que imagino, algumas pistas começam a se encaixar. Não será mera coincidência.
- Certamente senhor. Quer que eu leve o tenente?
- Não faça isso. Pedi para identificar o som, não para me trazer uma nova hipótese sobre o acorde das andorinhas em sinfonia com o grunhido dos marrecos. Deixe aquele ambientalista divagando do por que não ser uma onça a assassina.
A poucos quarteirões dali a viatura depara-se com duas origens sonoras. Uma do interior da Igreja Evangélica em caloroso culto ecumênico e outro do ato público na praça misturando o megafone no palco com o murmurinho da multidão exprimida para saldar as lideranças em exaltada evolução verbal.
- Mas onde é que está indo todo mundo?
O tenente não estava com a menor vontade de ficar ali, sozinho, ao lado do defunto. Quando percebeu a viatura partindo, foi perguntar para o sargento o que é que estava acontecendo.
- Sargento!
- Pois não, humpft, tenente.
- Por que é que a viatura está indo embora sem a minha autorização?
- Viatura, que viatura?
- AQUELA viatura, com a sirene ligada e as luzes piscando em cima.
- Ah, aquela? Bem, ela está indo investigar uma coisa pra mim.
- E que coisa seria essa?
- Pode ter a ver com essa defunta aí.
- Defunta, é? Hum... Bem, de uma maneira ou outra, se a defunta está aqui, as pistas também devem estar, pra que procurar tão longe?
- Ouça bem. O senhor não está ouvindo nada?
- Hum, é, agora que o senhor está falando, estou. Uma barulheira esquisita... Será a onça?
- Não senhor. Não deve ser.
- Mas o que será, então?
- É isso mesmo que eles foram investigar.
O primeiro a subir no palco era um baixinho de óculos fundo-de-garrafa. A multidão aplaudia. Ele começou seu discurso.
- TRABALHADORES DO BRASIL!
A platéia começou se olhar ressabiada.
- Hum, quer dizer, MINHA GENTE, NÃO ME DEIXEM SÓ!
Ouviu-se um início de vaia no meio da multidão.
- COMPANHEIROS E COMPANHEIRAS!
A platéia começou a jogar umas frutas esquisitas no coitado do baixinho, bacuris, cupuaçus, graviolas, pupunhas e outras coisas lá que ninguém nem sabia que existia.
- PORRA, MAS VOCÊS QUEREM QUE EU CHAME VOCÊS DE QUÊ, GALERA?
A platéia se aquietou um pouco. Ou as frutas acabaram, sei lá.
- GALERA TÁ BOM?
Um rapaz que estava logo ali, na primeira fila, olhou em volta, para os outros, cochicharam alguma coisa, balançando as cabeças e, finalmente, ele respondeu:
- É, galera tá legal.
O baixinho de óculos fundo-de-garrafa retomou o fôlego e, finalmente, começou seu discurso:
- E aí, galera?! Tudo em cima? Hoje nós vamos arrebentar! E vamos arrebentar porque nós vamos falar dessa porcaria que é carregar esse mato todo nos nossos ombros! Enquanto os carioquinhas ficam lá, curtindo o marzão deles, enquanto os paulistanos ficam lá, curtindo o MASP deles, nós, aqui nesse fim de mundo, além de suar em bicas ainda temos que carregar a Amazônia nas costas! POIS ESTÁ NA HORA DISSO ACABAR!
- ÊÊÊÊÊÊÊÊÊ (essa é a galera gritando, com os braços levantados)
- É isso aí galera! Agora só vocês!
- ÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ
O baixinho de óculos fundo-de-garrafa estava com a platéia em suas mãos. Ele era realmente um ótimo orador. Já tinha feito, inclusive, vários cursos de oratória, além de assistir todos os shows do Leandro e Leonardo. E ele continuou.
- Os homens lá de Brasília precisam entender umas coisas! Eles ficam lá, nas suas mansões, e só olham esse mato todo lá de cima, dos jatinhos particulares deles... Manda eles descerem aqui pra verem o que é viver nessa porcaria! Aguentar esse monte de mosquito! Esse monte de jibóia!
- ÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ
- E isso sem contar as piranhas!
- ÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ
(não sei se você sabe, mas o povo de Manaus não gosta muito de piranhas)
- E tem mais! Se a gente não pode cortar a madeira, se a gente não pode matar uns bichinhos, se a gente não pescar, pra que caralho é que serve esse matão todo, alguém aí pode me dizer?
- ÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ
Nesse momento, de dentro da Igreja Evangélica que ficava bem ao lado do palco montado, saiu um senhor trajando terno e com uma bíblia debaixo do braço. Ele olhou bem para a galera, levou o dedo indicador até a boca e fez:
- SSHHHHHH
Do meio da multidão, só dava para ver as páginas da bíblia estraçalhada sendo levadas pelo vento. Os guardas, boquiabertos, não puderam fazer nada, além de pedir reforços pelo rádio.