Capítulo 00010010

Manaus surgiu no horizonte. Primeiro o rio, depois o porto. Atrás, o perfil dos arranha-céus. Uma fumacinha saindo de duas torres.

- Olhando assim, parece até Nova York, não parece tenente?

- É, tirando uma coisa ou outra.

- O quê, por exemplo?

- Que Nova York só é desse tamanhinho quando a gente está a uns dez quilômetros de distância. E nós já estamos em cima de Manaus.

- É verdade. E aquela fumacinha saindo daquelas torres?

- Ah, já isso é igualzinho...

- Não, eu estou querendo dizer, o que será aquilo?

- Hum, não sei, sargento, mas deve ser algum novo tipo de chaminé. Isso aqui é uma zona.

- Franca, ainda por cima.

- Mas que tem alguma coisa esquisita por aqui, isso tem.

- Eu não estou vendo nada de errado.

- E aquela Roda Gigante ali, correndo atrás daquele bando de avestruz?

- Hum, é. Mas tirando isso, está tudo normal.

- Não está não. Não está vendo?

- O quê?

- Não tem ninguém no mercado.

- Hum, defina “ninguém”.

- Ninguém é ninguém, ué. Nenhuma pessoa.

- Ah, então você tem razão. Gente não tem mesmo. Mas olha só aquele monte de pacotes amarelos do Sedex.

- O que é que tem eles?

- Você não acha esquisito eles estarem dançando um funk?

- Bem, para falar a verdade, eu nunca recebi nem mandei um Sedex. Mando tudo por correio normal que é mais barato. Os pacotes não deviam estar fazendo isso?

- Não, não deviam. E nem aqueles ipods deviam estar tomando suco de goiaba na praça da Matriz.

- É, você falando desse jeito, realmente parece que está acontecendo alguma coisa esquisita. Vamos descer?

- Hum, acho melhor não. Não estou gostando muito do jeito que aquelas jabuticabeiras estão olhando para gente. Elas estão parecendo meio... meio...

- Famintas.

- É, famintas.

- Bem, qual é a cidade mais próxima daqui?

- Brasília.

- Brasília? Mas não tem nada mais perto que isso?

- Hum, bem, você está querendo cidade, cidade mesmo não é?

- É claro, que outro tipo de cidade existe?

- Bem, aqui perto de Manaus tem um monte de tipos de, hum, vilarejos e... Bem, a gente até pode chamar de cidade se o senhor quiser, mas eu...

- Tudo bem, já entendi. Então vamos para Brasília. E rápido.

* * *

Eles foram chegando em Brasília devagarinho. Aquela cidade e seus habitantes já eram tidos como esquisitões em tempos normais. Numa história como essa, então, eles podiam mesmo esperar de tudo.

- Olha, tenente! Não é que a cidade parece mesmo um avião olhando aqui de cima?

- Sargento, cuidado! Isso não é Brasília!

ZZZUUUUUMMM

- Mas o que foi isso, tenente?

- Um Legacy! Eu avisei para você tomar cuidado com os Legacy!

- Mas será possível que a gente não pode mais voar sossegado nesse país?

- Tudo bem, sargento, já passou.

- Já passou o escambal! Ele me cortou bem aqui, ó!

- Não foi nada, sargento! Foi só de raspão.

- Mas ele me arrancou um pedaço!

- Esses Legacy são assim mesmo, não liga pra ele.

- E agora? Vai saber que pedaço de mim era aquilo...

- Não devia ser nada importante, sargento. Devia ser um dedinho do pé, ou coisa parecida.

- Ok, ok, está certo, não adianta se desesperar.

- Isso, sargento. É numa hora dessas que a gente fica sabendo se a gente é um saco de batatas ou um... hã... tapete.

- Acho que nós já estamos chegando, tenente. Mas eu acho que chegamos tarde demais. O senhor está sentindo o cheiro?

- Brasília é assim mesmo, sargento. Tem sempre algo de podre no ar.

- É, mas esse cheiro é diferente. É aquele mesmo cheiro que sentimos lá em Manaus. Cheiro de fritura. De óleo queimado.

E Brasília também havia sido infectada. Todos os habitantes haviam se transformado em... em... em alguma coisa. Havia elefantes batendo longos papos com papéis toalha, observando os maracujás tomando sol. Os antigos senadores haviam se transformado em porquinhos da índia. Alguns, inclusive, nem notaram a diferença. Um dos deputados se transformou num veado-campeiro, e passava os dias saltitanto e falando mal da Marta Suplicy. Um outro se transformou numa massa de pizza, e teve que convencer trezentas fatias de muzzarela a cobri-lo em troca de uma azeitona por mês. O próprio Palácio da Alvorada se transformou numa espécie de gelatina azul.

- É o gás, sargento. Ele está se espalhando. Provavelmente, todo o país já esteja contaminado. Talvez até... o mundo!

- O mundo?

- É, o mundo!

- Nossa, isso dá o que pensar, não é?

- É, dá.

- Por exemplo, no que será que o Michael Jackson se transformou dessa vez?

- Não consigo nem imaginar Sargento.

- Talvez num criado-mudo. Existem muitas possibilidades. Quem sabe um divã de psicanalista ou miniatura plástica do King-Kong vendida em lojas. Quem sabe o que mais...

- Ôpa Sargento! Aquele tipo de criado-mudo que fica caladinho e não se mexe ao lado da cama? Isso seria castigo para o hiper-super-pop-star...

- É claro que esse tipo de criado-mudo. Daqueles negões que ficavam a servir seus senhores durante a escravidão é que não era.

- Mas o senhor bem que pode estar certo Sargento. Quem sabe um divã de psicanalista. Talvez esse gás aflore todas nossas neuras e aflições mais profundas, transformando-nos naquilo que não...

- Neuras? Qual minha neura em virar um tapete? Gostar de ficar por baixo e ser espezinhado por pés imundos?

- Calma Sargento. Só cogitei a hipótese. Desculpe! Mas não acho que ele se transformaria num gorila negão, musculoso e peludo, que gosta de ter uma loirinha nas mãos para fazer o que quiser, como dar banho de cachoeira e passar o dedinho entre seus seios enquanto a água escorre...

- Pare com isso que você já está me molhando. E não fale em Gorila negão. Macaco Gigante Afro-descentente.

- Desculpe Sargento. Pela umidade e pela ignorância. Como sempre vossa sapiência possui notório brilhantismo e indiscutível discernimento sobre comportamento social contemporâneo. Afro-descentente realmente é politicamente mais correto e evita irmos em cana. Mas por que Kong? Não podia ser um mico-leão-dourado a beira da extinção?

- Poderia ser qualquer coisa Tenente. Até bola de basquete da NBA só para ficar passando de mão em mão. O que importa isso agora? Perderemos ainda linhas e mais linhas a argumentar a última pergunta do capítulo anterior ou mudaremos definitivamente de assunto?

- Verdade Sargento. Mas sabe de uma coisa? Eu nunca quis ser uma mulher. Sei que o senhor vive me acusando disso, mas nunca quis. E o senhor nunca quis ser o que?

- Um tapete oras! Conhece alguém que gostaria de ser um tapete? Na realidade sempre tive ódio de tapete. Sempre tropecei em vários. Aquela coisa sempre cheia de ácaros, cheirando mofo, sempre em baixo das coisas e essas coisas.

- Sabe que eu também sargento. Sempre tive ódio de mulher. Sempre tropecei em várias. Aquela coisa sempre cheia de acnes, cheirando bofe, sempre em baixo das coisas e essas coisas...

- Tenente! Descobrimos a América. Como não havia pensado nisso antes? Isso agora é tão óbvio...

- Mas Cabral descobriu a América. Onde está terra a vista? Não podemos plagiar uma descoberta dessas em pleno século XXI.

- Colombo imbecil. Quem descobriu foi Colombo! Mas não quis dizer literalmente. Usei metaforicamente... Sabe? Metáfora?

- Não entendi nada Sargento!

- Novidade! Conte uma nova para variar.

- Ah! Isso eu sei. Conhece aquela do padeiro que...

- Porra Arosio! Se fosse a Daniele Vinitz vai lá. Mas você é morena. Use essa vantagem competitiva e não fale asneira. Afinal esse rostinho lindo e corpinho sarado não podem ser somente mais atração da TV para atrair publico masculino. Tem que ter conteúdo minha menina.

- Conteúdo? Quem a TV?

- Não! Você morenona!

- Obrigado Sargento. Não sabia que me considerava tanto.

- Mas não falo de você. Falo da Arósio.

- Epâ Sargento! Sou eu o Tenente e não a Arosio em cima do Senhor. Pense no que quiser, mas cuidado com a reação física. Ainda estou em cima e não estou gostando desse bolinho de linha se armando em baixo de mim...

- Desculpe Tenente. Não pude evitar

- Mas controle-se senão eu salto.

- Olha Tenente, quem sabe voar sou eu, não você...

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